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Tag: O Beijo no Asfalto
Poltrona Cabine: O Beijo no Asfalto/ Cesar Augusto Mota
Um filme bastante ousado, com atmosfera noir, prima pela metalinguagem e aborda assuntos que estão até hoje nas mais diversas rodas de discussão. ‘O Beijo no Asfalto’, baseado na peça homônima escrita em 1961 por Nelson Rodrigues, marca a estreia de Murilo Benício na direção, em uma produção que é um verdadeiro deleite para os olhos do espectador e que, sem dúvida, vai ficar por muito tempo na boca do povo, principalmente no que concerne à maneira como a obra foi construída.
A narrativa traz a história de Arandir (Lázaro Ramos), um homem que realiza um ato de misericórdia ao dar um beijo na boca de um homem desconhecido que estava prestes a morrer após ser atropelado por um lotação. A partir daí vemos Amado Ribeiro (Otávio Müller), um jornalista disposto a trazer a notícia, criando uma fake news para conseguir mais repercussão e, consequentemente, vender mais jornal. Além dele, o incidente foi presenciado pelo sogro de Arandir, Aprígio (Stênio Garcia), que nutre muito ódio por ele e possui uma relação controversa com a filha Selminha (Débora Falabella), esposa de Arandir. Nessa atmosfera atribulada, a vida de Arandir vira um inferno, com a perseguição da polícia e da mídia, prejudicando seu casamento e a relação de amor e confiança com Selminha.
A forma como Benício escolheu para trazer esse enredo ao espectador foi de um extremo bom gosto, com uma mescla entre a produção da história feita no teatro e depois adaptada para a televisão. A conexão e a descontração dos atores em uma mesa redonda para ensaiar as falas são flagrantes e causam grande comoção, e nela estão dois grandes ícones que brilharam centenas de vezes nos palcos e dão o ar da graça nessa obra, como Fernanda Montenegro e Amir Haddad. É a arte falando da própria arte, com o público observando a montagem dos cenários, os ensaios dos atores, a equipe de filmagem de preparando para as cenas e o preto e branco na tela com clima de produção de época. Sem dúvida, uma obra de tom incrível e que foge do convencional e com assuntos cada vez mais atuais.
O ritmo apresentado no filme é frenético, na medida em que a história vai se desenrolando, o sentimento de desespero de Arandir se aflora, o espectador consegue se inserir na trama e nos convencemos acerca dos conflitos pelos quais passa o protagonista, como a questão de sua sexualidade posta em dúvida, um suposto adultério e também a fidelidade dele para com sua esposa. E outro quesito importante é até que ponto um profissional de imprensa pode ir para alcançar audiência e prestígio. Nos dias atuais, tudo isso ainda é latente, ainda mais com a existência das redes sociais, que podem acabar com a dignidade de um ser humano, além de lhe provocar feridas e expô-las ao público.
As atuações são brilhantes. Lázaro Ramos faz o espectador se sensibilizar e ficar estarrecido com as perseguições que acaba sofrendo da polícia e dos órgãos de imprensa, que o tratam como criminoso e uma aberração. Débora Falabella convence como Selminha, a mulher que sofre todas as atrocidades e brutalidades dos oficiais, além de ter sua mente afetada com todo o imbróglio no qual seu marido se envolve. E Otávio Müller representou com perfeição um repórter fissurado por fama e holofotes, e suas atitudes ilustram a que muitos profissionais de imprensa ilustram hoje em dia.
Com algumas alterações, mas sem perder a essência de Nelson Rodrigues, Benício consegue levar ao público uma obra que provoca emoção, reflexão e paixão pela sétima arte, tamanha a delicadeza com a qual a história foi tratada e a precisão em sua construção. Quem já teve contato com as obras de Rodrigues vai se surpreender positivamente com o resultado desse filme, mas quem nunca teve a chance de apreciar os textos e todo o legado deixado por Nelson Rodrigues, essa é uma grande oportunidade. Não perca!
Cotação: 4/5 poltronas.

