Maratona Oscar: Cafarnaum/ Cesar Augusto Mota

Maratona Oscar: Cafarnaum/ Cesar Augusto Mota

Uma ficção com roupagem de filme documental que retrata uma triste realidade coletiva. A alternância de um drama pessoal com o vivido por milhões pelo mundo, assim pode ser definido ‘Cafarnaum’ (Capernaum), novo filme de Nadine Labaki (Caramelo), vencedor do prêmio do Júri do Festival de Cannes 2018 e indicado ao
Oscar de melhor filme estrangeiro. Uma produção cuja história e efeitos visuais e sonoros impressionam.

A narrativa traz a história de Zain (Zain Al Rafeea), um garoto de 12 anos que vive em Beirute, capital do Líbano, e cuida dos irmãos no cortiço em que mora com os pais, donos de uma mercearia. Quando a irmã dele, um ano mais nova, é forçada a casar com um homem mais velho, o menino reage e, em forma de protesto, resolve abandonar a casa dos pais e viver nas ruas, onde convive com refugiados da guerra síria. De quebra, ele ainda é preso e fica sob custódia do Estado por ter esfaqueado um homem e chega a processar os pais por ter nascido, recomendando no tribunal um controle de natalidade à família e ao país como uma forma de amenizar o caos que assola a nação libanesa.

Cafarnaum, cidade que dá nome ao filme, fica a noroeste do Mar da Galileia, a 100 quilômetros de Jerusalém. Segundo a bíblia, ela foi palco de alguns milagres de Jesus, como a cura do servo do centurião, da sogra de Pedro e de um paralítico que fora carregado por quatro homens, além de ter sido o local onde Cristo fez um famoso discurso, no qual afirmou ser o Pão da Vida (João 6:24-65). Porém, o nome Cafarnaum é traduzido no filme como caos ou desordem. O espectador se depara com um bairro de Beirute assolado pela miséria em seus becos e cortiços, com a violência correndo solta e crianças brincando felizes, apesar do cenário ca&oacut e;tico e devastador. O protagonista vive em uma família numerosa, com pais abusivos e em condições precárias, sem apoio financeiro e moral. Revoltado após a família trair sua confiança e entregar a irmã para se casar, ele vive uma realidade ainda mais dura, dividindo a rua com refugiados sírios e africanos, o que o faz atingir uma maturidade precoce e buscar alternativas para ganhar dinheiro, e para isso usa a criatividade, ainda mais quando passa a cuidar do pequeno Yonas, filho de Rahil (Yordanos Shiferaw), uma mulher etíope, imigrante ilegal.

Os planos utilizados, além do som captado com o auxílio da câmera na mão, são recursos para proporcionar imersão do espectador ao ambiente e ao drama retratados, não só do pequeno Zain, como os milhares de pessoas em condições de refugiados que vivem em território libanês. O roteiro, apesar de trazer uma realidade já conhecida e que lamentavelmente ocorre ao redor do mundo, como a crise dos refugiados na Ásia, proporciona reflexão sobre a visão e a posição de cada um no mundo, e quem se reconhece como cidadão passa a combater todas as atrocidades e injustiças das quais são vítimas, caso de Za in, que não só buscou a tutela do Estado, como foi capa de provocar no tribunal um debate muito importante acerca da justiça, da violência sofrida por Zain em ambiente familiar, tanto física como verbal, pois era sempre xingado e empurrado pelos pais, e, principalmente a empatia entre pais e filhos.

As atuações são vibrantes e emocionantes, principalmente do protagonista, com Zain Al Rafeea mostrando o dia a dia de milhares de crianças em meio a pobreza e a falta de tutela do Estado, que não lhe proporciona direitos, nem mesmo o registro de nascimento, algo que Zain busca incessantemente durante o filme. O elenco de apoio é bastante coeso, que conta também com a participação de Nadine Labaki, no papel de advogada de Zain. Sua intervenção foi didática e importante na discussão acerca dos direitos do protagonista, que fora preso por esfaquear um homem, bem como a condição de cidadão, algo que não era reconhecido, com Zain sendo praticamente invisível para o Estado.

A mescla de realidade e ficção não só emocionou o público, como serviu para motivar discussões acerca de temas atuais, além de colocar o espectador no lugar daqueles que sofrem com injustiças, mas encontram forças para lutar contra elas, apesar de tudo. Um ótimo trabalho de Nadine Labaki e merecida a indicação do filme para representar o Líbano no Oscar. Um forte candidato, sem sombra de dúvida.

Cotação: 4/5 poltronas.

Maratona Oscar: O Insulto/ Cesar Augusto Mota

Maratona Oscar: O Insulto/ Cesar Augusto Mota

Você sem dúvida já ouviu muitas vezes que palavras podem machucar mais que uma agressão física, certo? E é justamente por meio dessa premissa que foi concebido ‘O Insulto’, filme libanês do diretor Ziad Doueiri, uma produção que vem recebendo avaliações positivas da crítica e baseada em uma história real, ocorrida com o próprio cineasta.

Toni Hanna (Adel Karam) é libanês e membro do partido cristão, e possui como hábito regar suas plantas de sua varanda. Um dia, por acidente, acaba molhando Yasser Salameh (Kamel El Basha), um refugiado palestino. Ao perceber que a calha da residência de Toni estava com defeito e molhando os pedestres, Yasser, por sua iniciativa, resolve consertar, mas o serviço é posteriormente desfeito por Toni. Não satisfeito, Yasser insulta Toni, que explode de raiva e exige um posterior pedido de desculpas. Na tentativa de se desculpar, o palestino é surpreendido com uma forte declaração, que fere sua honra, dignidade e o contexto histórico de seu povo, e revida com um forte soco em Toni, quebrando suas costelas. A partir daí, uma questão que era apenas entre particulares começa a tomar grandes proporções, e um forte circo midiático é montado, envolvendo todo o Líbano, inclusive o presidente do país, para resolver a questão.

O roteiro, assinado em conjunto por Ziad Doueiri e Joelle Touma, traz não só a raiva e a intolerância, mas a insurgência entre libaneses e palestinos, existente há pouco mais de cinco décadas, o  principal pano de fundo da história. Este é um problema enraizado e ainda não cicatrizado, que mexe com milhares de famílias, que sofrem com constantes perseguições e vidas sendo dizimadas. O mérito do filme está em conseguir juntar todos esses fatos, estruturá-los e passar para o público uma história verossímil, que aborde não apenas um conflito isolado entre duas pessoas, mas todo o drama de duas nações, além da parcialidade e da corrupção existentes no poder Judiciário, esta última nos lembrando um pouco do que acontece na realidade atual da sociedade brasileira, com constantes e intermin&aacute ;veis discussões.

E outro elemento que funciona muito bem durante o filme é a montagem, que não fica restrita às filmagens nas ruas de Beirute, mas também no tribunal onde o caso Toni-Yasser irá ser julgado, e algumas tomadas em Israel, local onde se iniciaram os dramas vividos até hoje pela comunidade palestina. Cada cena gravada, com planos mais fechados nos rostos dos protagonistas e depois nos ambientes familiares, nos dá o tom da dramaticidade que o longa irá apresentar ao espectador, antes de chegarmos ao clímax da história, quando o caso ganha cobertura ampla dos canais de televisão e batalhas campais passam a acontecer nas ruas de Beirute, espalhando pânico, incertezas e terror. Não é apenas Toni contra Yasser, mas os cristãos libaneses se opondo aos refugiados palestinos, o futuro de dois povos em jogo e que vai nos fazer importantes revelações, inclusive traumas do passado desses povos, como também dos protagonistas.

As atuações do elenco são acima da média, não apenas o núcleo principal se destaca, como também o secundário, com os advogados de acusação e de defesa, Wajdi Wehbe (Camille Salameh) e Nadine Wehbe (Diamand Bou Abboud), que são curiosamente pai e filha na trama, além da juíza Colette Mansour (Julia Kassar), de quem todos esperam um veredito justo. A cada dia de julgamento, as partes surpreendem com as provas e testemunhas convocadas e discussões acerca das diferenças, da falta de tolerância e reflexões sobre o passado e o futuro do Líbano e da Palestina são inseridos, com importância decisiva na condu&cce dil;ão final da trama. O espectador não fica a favor de um lado e contra o outro, cada extremo é abordado de forma cuidadosa e com os elementos necessários para prender a atenção e sensibilizar a todos, um perfeito trabalho do corpo de atores, aliado à equipe técnica.

Agraciado com o Audience Award da American Film Institute e com o prêmio de melhor ator para Kamel El Basha no Festival de Veneza, ‘O Insulto’ vem forte para o circuito comercial e com importantes mensagens, é preciso amor, tolerância e rever as diferenças. Agressões físicas podem até machucar, mas ferimentos causados por palavras podem demorar ou até mesmo não cicatrizarem.

Avaliação: 4/5 poltronas.

 

 

Por: Cesar Augusto Mota